sexta-feira, 23 de novembro de 2007

Outrem

Era a quarta vez que me debruçava num gole amargo de cerveja. Entre um e outro, outrem. As faíscas angustiantes, que saiam de minhas vísceras, chutavam longe o lembrar. Eu não queria lembrar. Mas me perder em lembranças podia ser uma forma de me achar. Sempre fora. Mas eu não queria me achar. Dessa vez não. Se eu me achasse, eu te perderia. A única maneira de te ter é quando não me tenho. E eu sabia disso.

Eu precisava: me beber, me ter, me ler, me sofrer, me viver... E, finalmente, me morrer; para então te ter. Nem antes nem depois eu te queria. Queria agora, soprando vagamente as fumaças de teu cigarro. Eu iria dançar ao passo delas como tu dançastes para mim ao som de histórias de outrem. Mas tu não chegavas. O meu vazio, naquele instante, corria o risco de ser preenchido. E eu não queria. Queria que, no máximo, ele viesse metido na mesma fumaça, assim como a víbora rebolona saindo da caixa aos mandados da flauta. Eu aspiraria e depois desfazer-se-ia. Eu iria vomitar teus cabelos, ou melhor, a lembrança de teus cabelos se o vácuo fosse preenchido. Mas não era tempo.

Chegastes e eu já estava pronto pra te ter. De posse, andei pelos teus cabelos, aquelas cabras que surgiam. Cortei-te a face. Chupei teu sangue. Roí tuas unhas. Lambi teu ventre. Suguei teu cheiro. Senti teu gosto. Provei teu peito. Mordi forçosamente teu sorriso. Perdi-te de vista. Volte a ver-te. Olhei teu corpo: apavorei-me. Eu já não sabia quem era, se era, se estávamos, se eu estava, se tu estavas, se eu era, se eu sou.

Subitamente, saí de mim completamente e me juntei a ti. Por um instante de segundo, mergulhado na imensidão do meu vazio, que se arredondava a me espremer, e doendo, doendo, doendo muito, te agarrei, me larguei e te tive, noutra mísera parte do mesmo instante de segundo, ao som de uma sinfonia que ouvira alhures.

As notas já eram ruídos, e, não sei quando e como, saboreei teu cheiro no meu vazio eterno, engolindo a tira-gosto todo o torpor que tua pelo expirava. Aquilo foi, igualmente, gozo e piedade lastimosa – eu ressurgindo.

Afastei-me, acordei e meu vazio já não estava. Em mim, em ti, nem por aí, nem por aqui, nem lá nem cá. Meus olhos semicerrados se... E ficou a dança do ventre, o sótão vazio, tudo e o som, de outrem.